quinta-feira, 11 de abril de 2024

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Para aqueles que amei e aqueles que odiei.

Para o nobre trabalho do crime, que sustenta uma sociedade de viciados e lhes dão luz, paz, criatividade, harmonia, refúgio desse país de bosta, viagem de graça para aqueles sem dinheiro pra ir até Ibaté.

Para os viciados, nobres valetes que desafiam a autoridade fumando um baseado, cheirando um pó, e assim se alimenta na sociedade da fome.

Para a polícia, que tira a vida de ambos em um massacre sem fim no qual eles afirmam ser uma guerra, que se orgulham em matar e destruir qualquer um que desafie o universo por sua existência e beleza única.

Para aqueles que morreram na mão dos vermes fardados, que apanharam por carregar um vinagre na bolsa.

Para aquele policial específico que quase matou meu avô depois de espancar ele, pois queria encontrar meu pai.

Para os traficantes da perifa, que coordenam toda a cidade melhor que qualquer presidente ou prefeito de bosta, de qualquer partido pelego sem cor nem beleza.

Para aqueles que vão nos bairros ricos e roubam-lhes as bicicletas, vendem na rua do meu padrasto.

Para os roubados, também, em sua fúria infantil típica dessa classe média em ascensão.

Para toda a classe média em ascensão, e suas fúrias por verem que ainda são pobres e estão ficando cada vez mais pobres no colapso da economia brasileira.

Para aqueles que saem de uma jornada de trabalho de quase trinta horas, andam nas ruas da Vila Prado, olhando a vida morrer enquanto as pernas cansadas gritam no caminho pra casa.

Para aqueles que moram na Vila Prado, os velhos, traficantes, mães de cinco, trabalhadores, que residem nas casas antigas caindo aos pedaços e se reúnem na calçada no final do dia em seus tocos de madeira e conversam sobre a maquinaria da noite.

Para aqueles cansados dessa porra de cidade pequena, que te prende aos 25 anos e te mata um pouco a cada dia.

Para aqueles mais novos que anseiam fugir da cidade, ir pra São Paulo e reescrever a própria história.

Para aqueles que perdem todo resquício de si, até serem loucos de chamarem as coisas que mais amam de hobby.

Para aqueles que amam tanto a arte que querem desesperadamente participar dela, mas faz em segredo, pois os colegas de trabalho nunca iriam entender um zine com a capa de uma travesti segurando uma AK-47, pois são burros e simples.

Para os artistas de sucesso, em geral filhos de outros artistas, que sempre tiveram na mão a inspiração, o material e a referência, e depois vomitam o discurso ridículo de meritocracia e esforço que nunca precisavam ter.

Para os artistas que nasceram em famílias onde ninguém conhece arte, que lutam todo dia em seus próprios fracassos, que fazem arte ruim, barata, fedida e podre.

Para aqueles que comprar essas artes de bosta, pois se encontram na mesma situação artística e espera que comprem deles também, e não porque apreciam, de verdade, o produto.

Para aqueles, e em especial para aqueles, que apreciam verdadeiramente a podreira desse tipo de arte, que se encanta e chora, que goza no zine pornô de algum cara chamado Francisco.

Para aqueles que trabalham mais de vinte e quatro horas direto, sem descanso, sem ajuda com transporte, sem a porra de um vale alimentação.

Para seus patrões, que ficam sentados o dia todo comendo igual porcos no abate, ganhando dinheiro explorando outros para manter as unhas em dia.

Para os pais controladores e rígidos, que tiram a liberdade de seus filhos e o abusam de suas bondades.

Para os filhos de pais controladores que fogem de casa e fumam cigarro para mata-los internamente.

Para aqueles que fumam sozinho em casa, escondidos dos pais.

Para aqueles que nunca fumaram na vida.

Para os enfermeiros e técnicos de enfermagem, que curam como uma bruxa e cuidam como uma mãe.

Para os médicos que ficam sentados em um consultório de merda o dia todo dando ordens e fazendo nada.

Para os pacientes, que aguardam mais de quatro horas em um atendimento emergencial pois o médico está ocupado fumando na garagem do UPA e ocupando todos os colchões das salas de repouso em seu sono de criança.

Para os copeiros, pois sem eles não há café.

Para os filhos dos ricos que, ao se descobrirem transviados, saem em um não-caminho, são expulsos e torturados, ficam sem herança, sem casa, sem dinheiro, apenas com o próprio cu como moeda de troca.

Para os filhos de pobres que, ao se descobrirem transviados, ganham mais uma dor de cabeça para cuidar, e continuam no mesmo caminho que já iriam.

Para todas as transviadas, de todos os tipos, de todas as lutas.

Para as bixas velhas, que dão às mais novas sexo, herança, ancestralidade e perspectiva de um futuro vivo.

Para as anarcobixas, travestis nervosas, transviadas revolucionárias.

Para as putas e michês, que sustentam a sociedade do sexo e filosofia, e precisam ser endeusadas de todo tipo.

Para os anarquistas, que lutam e vivem acima do fracasso, que perdem todo ano uma luta na construção de uma sociedade melhor.

Para os outros anarquistas, que desistiram desse tipo de luta futurística e só querem ver o caos crescer e destruir a sociedade por completo.

Para os cagões anarquistas, que não conseguem fazer porra nenhuma e nunca tirou o nariz do apartamento chique, mas sabem de cabeça todas as correntes, teorias e vertentes anárquicas.

Para aqueles que beijei, nas festas, nas ruas, nos ônibus lotados, nas batalhas de rap, nos cantos escondidos das escolas que participei, no trabalho de bosta que me suga a alma e espírito, para os homens de quase todas as idades e também para as mulheres que me atraem e, principalmente, para aqueles que fogem dos homens e das mulheres nas suas próprias percepções de si.

Para aqueles que transei, também nas festas, nas ruas, nos ônibus lotados, nas batalhas de rap, nos cantos escondidos das escolas que participei, no trabalho de bosta que me suga a alma enquanto eles sugam meu pau na calada da madrugada. Não dedico, em hipótese nenhuma, para aqueles que transei em uma cama, à meia-luz, em papai-e-mamãe. Acho um tanto démodé.

Para aqueles que não transam de maneira alguma.

Para os românticos.

Para os que odeiam romance.

Para aqueles que amei, pois vivo por eles, anseio por eles, gozo por eles, me completo por eles, me anseio por eles, me acabo por eles, me toco por eles, me  endivido por eles, me acabo por eles, morro por eles, vadio por eles, ando por eles, pego ônibus por eles, corto a cidade por eles, traio por eles, espanco por eles, sou espancado por eles, sou preso por eles, sou abusado por eles, sou algemado por eles, sou destruído por eles, sou poético por eles, sou amoroso por eles, sou presente por eles, sou ouvinte por eles, sou belo por eles.

Para aqueles que odiei, pois eles me revoltam, me destoem, me limitam, me enchem a porra do saco, me abusam, me prendem, me algemam, me tiram do presente, me machucam, me anulam, anulam minha alma, anulam minha identidade, anulam meu espírito, anulam minha arte, anulam aquilo que sou, aquilo que não sou, aquilo que quero ser, aquilo que fui, aquilo que nunca serei.